O Telepata 243 percorreu o trajecto que o separava da Sala dos Telepatas num deslizar rápido. Estava contente. Bem alimentado. Rescendia em odores de felicidade.
O Telepata 243 era um telepata de carreira longa e bem sucedida. Tinha 4 filhotes de outras tantas telepatas que haviam compartilhado consigo a telepatia. O filhote mais velho era já telepata, também. O Telepata 243 havia dado à civilização o conhecimento detalhado de centenas de individualidades de quatro mundos diferentes. Quatro mundos, nem mais nem menos! O Telepata 243 era muito considerado entre o seu povo.
Porque o povo do Telepata 243 tinha um gosto especial em distracções telepáticas. E tinha em alta conta aqueles que lhe forneciam essas distracções.
O Telepata 243 entrou na Sala dos Telepatas num deslizar confiante. Estava contente. Bem alimentado. Preparado para mais uma sessão telepática de absorção de conhecimento.
O Telepata 243 ligou o aparelho. Luzes piscaram fugazmente no espaço à sua frente. O Telepata 243 ditou com a mente algo que poderia traduzir-se por uma data e um número. E ainda "Telepata 243 em preparação para o contacto AT-286-NT. Sujeito: Terra." Ou o equivalente a isto na língua do telepata. Na língua psíquica do telepata.
O Telepata 243 olhou em volta. Procurava absorver uma golfada de realidade antes de ligar-se à interface telepática. Massas bolbosas vomitavam suavemente por todo o lado. Telepatas. Outros telepatas. Cada um com o seu contacto, cada um ligado ao seu aparelho, cada um flutuando no seu lugar. Todos silenciosos e imóveis. Se não se contar com o som do seu suave vomitar, ou com um estremecimento aqui e ali.
O Telepata 243 suspirou. Ou o equivalente a suspirar na sua fisiologia emocional. Aconchegou-se na sua ausência privada e começou a premir botões. Ou o equivalente a fazer isso. Com a mente. Estabeleceu contacto. Algo em si desapareceu. E o seu corpo começou a vomitar. Suavemente.
O indonésio saiu do seu lugar. A T-shirt preta reflectia ripas de sol que entravam pela janela. À sua volta, planeava-se o próximo incêndio. Não ligou. Iria para onde o general Amianto o mandasse. Faria o que o general Amianto quisesse que ele fizesse. O general estava de pé, ao telefone. Falava baixo, num tom de voz respeitoso. Devia ser um chefe, do outro lado. Mas o indonésio estava-se nas tintas. O que o preocupava era aquela pulga que o mordia por baixo da T-shirt preta. Aquela pulga que o incomodava e que o indonésio procurava matar. Mas não era capaz de encontrá-la.
O Telepata 243 suspendeu a ligação. Ditou ao aparelho o equivalente a "Sujeito indiferenciado. Mentalidade de bando. Não parece afectado por ambiente exterior de expectativa. Pulga: armazenar referência para posterior pesquisa. Provavelmente pequeno animal parasita". O Telepata 243 sentiu-se contente com aquela dedução. Outro telepata menos experiente não a teria feito. Mas ele, o 243, tinha pesquisado quatro mundos diferentes... por isso agora vomitava azul-claro.
Se alguém o tivesse visto naquele momento, repararia por certo na cor. Ou talvez nem fosse necessário. Porque o Telepata 243 soltava moléculas azuis-claras que partiam em todas as direcções. E os detectores estavam atentos. E os telepatas controladores também. Os telepatas controladores sabiam que o 243 estava bem.
Os telepatas controladores tinham uma boa vida. Sossegada. Também, já eram bem velhos. Eram telepatas que haviam visitado mais de cinco mundos, todos eles. Agora já não visitavam outros mundos. Visitavam apenas as mentes daqueles que visitavam os mundos. Podiam saltar duma para a seguinte à sua vontade, absorvendo os mundos através de um filtro. Do melhor filtro possível.
O Telepata 243 estava quase lá. Faltavam-lhe poucas dezenas de sessões neste mundo antes de seguir para o próximo. E depois desse seria a sua vez de visitar todos os mundos que quisesse através de um filtro. Do melhor filtro possível.
O Telepata 243 sorriu. Ou o equivalente a um sorriso na sua fisiologia emocional. De seguida reatou a ligação.
O indonésio estava de pé, à porta. Coçava-se. Com a outra mão, afagava a pistola-metralhadora que lhe fora distribuída para esse dia. Preferiria afagar outra coisa. Percorreu com os olhos os bíceps do Tipo. O indonésio andava fascinado com o Tipo. O Tipo era dos deles. Dos outros. Dos insignificantes magros e de grandes cabeleiras. Que falavam uma língua esquisita. Que não se percebia. Mas o Tipo falava bahasa indonésio quase tão bem como o indonésio e era grande. Muito grande. Com grandes bíceps que o indonésio sem querer queria afagar. Por isso afagava a pistola. Talvez por isso se coçasse.
O general pousou o telefone. O indonésio fez-se soldado e endireitou as espaldas. O general resmungou "Não, idiotas! Vocês hoje são dos outros, não se põem em sentido à minha frente!" O indonésio sentiu-se humilhado. Mas era bom ser humilhado pelo general Amianto. Ele faria o que o general Amianto quisesse. Todos eles o fariam. Talvez o Tipo não, no entanto. Ele era mesmo um dos outros. Não se podia confiar nos outros. Nem mesmo no Tipo.
O general distribuiu as listas do dia. Pelas mãos do indonésio desfilaram rostos e nomes. Um monte de outros insignificantes na lista principal. As mulheres e familiares chegados desses outros nas listas de identificação. Absorveu referências na memória, depois devolveu as listas ao general. Não podiam andar com elas pela rua. Algum metediço podia reparar.
O Telepata 243 desligou-se só em parte. Reparou que vomitava anil, o que era mau sinal. Tensão. Algo retesava as suas glândulas. Ditou "Tensão. Relacionamento intraespecífico confuso. Conflituoso. Reflexos de caça". O telepata absorveu um neuro-repressor pelos Poros da Vida. Mas não se preocupou muito. Já havia encontrado situações daquelas antes. Situações em que predadores partiam em busca de presas. E também situações em que presas perdiam as suas vidas para predadores.
O Telepata 243 não se preocupou por aí além. Tinha experiência. E acidentes eram raros. Precisavam de demasiada absorção ou de violência em demasia. E aquele planeta era calmo, comparado com outros. E o Telepata 243 havia visitado quatro. Telepaticamente.
A parte de si que se mantinha ligada à máquina mostrava movimento lá em baixo. O Telepata 243 restabeleceu uma ligação total.
O indonésio estava quase feliz. Debruçava-se sobre a cabina da camioneta esmagado entre um subindonésio e o Tipo. O subindonésio estragava tudo. Era outro quase insignificante. Que falava com sotaque. Vinha duma ilha qualquer a leste. Uma ilha cheia de macacos. Só com macacos. Como esta. Repelente. Mas estar ali, escarranchado de encontro ao Tipo, compensava qualquer desconforto. Sentia os bíceps do Tipo latejar de encontro ao seu ombro. Sentia as coxas do Tipo em encontrões arrítmicos às suas ancas. Nas curvas encostava-se mais. Mas continha-se. Porque se achava acusado por Alá. Sem razão, no entanto. Nunca tinha feito nada. Nunca tinha tentado alguma coisa. E não tinha culpa dos solavancos.
O indonésio ia mostrar a Alá que não havia motivo para acusá-lo. O indonésio amava Alá quase tanto como amava o general Amianto. E mais que o Tipo. Oh, muito mais! O indonésio ia mostrar que era assim. E era já.
A camioneta tinha parado e já os outros saltavam da caixa, lá atrás. Os outros como ele. Os que vestiam as T-shirts pretas. Gritava-se. O indonésio também gritou. Sacou da sua automática e lançou uma rajada. Nem viu para onde. E não interessava, porque os outros também tinham disparado. Os outros de preto. Porque os insignificantes fugiam, escondiam-se, gritavam.
O indonésio recordou-se das listas e pôs-se a olhar para os insignificantes. Os malditos eram todos iguais. Deviam fazer de propósito para não serem identificados. Mas não se podia cair nessa esparrela, por isso o indonésio olhava para eles com atenção. Viu um rosto conhecido. Disparou. Duas balas entraram na carne, mas foi só nas pernas. Disparou de novo. Agora sim. Tórax, tórax, abdómen, virilhas. Está feito. O indonésio sorria ao ver o outro a estrebuchar. Aproximou-se. Virou-o com o pé. Olhou-lhe a cara e resmungou:
"Merda. Enganei-me."
Conhecia aquele, sim. Mas não das listas. Era o tipo que lhe vendia os legumes quando se fartava da comida de caserna.
"Que importa? É um deles na mesma."
Outro dos outros passou por si a correr. Levava uma catana e brandia-a em todas as direcções. Mas não lhe acertou. Porque no pânico em que vinha nem o viu. Corria perseguido por dez ou quinze T-shirts pretas. Que riam, gritavam, disparavam tiros que roçavam os pés do outro. Divertiam-se. O indonésio fez pontaria. Disparou. Atingiu o outro nas costas. A meio das costas. Um pouco ao lado da coluna vertebral. O outro caiu. Estatelou-se. Arqueou o dorso e ficou imóvel.
O indonésio correu a apanhar a catana. Viu o outro abrir os olhos. Olhou-o, enquanto lhe cortava a barriga nua. Olhou-o bem nos olhos até que eles se apagassem. Depois debruçou-se. Vagamente incomodado pelo cheiro que saía da barriga aberta. Debruçou-se sobre os olhos. Pegou na faca e retirou com cuidado um dos olhos do outro. Olhou-o com curiosidade, na mão. Cheirou-o. Fez pressão com os dedos e sentiu o olho a ceder um pouco. Pôs o olho na boca e fechou-a. Sabia a sangue.
O indonésio cuspiu o olho do outro e correu para a casa de onde ele saíra. Vinha de lá um grande alarido. Encontrou as T-shirts pretas amontoadas num quarto. De facas na mão. No chão, duas fêmeas dosoutros gritavam altíssimo. Uma sangrava do pé. Onde não tinha três dedos. O Tipo estava lá também. Com uma faca na garganta da outra fêmea, sacudia as ancas ritmadamente sobre ela. Sangue empapava-lhe as pernas. Sangue da fêmea. Que devia ter uns dez anos. E o Tipo era grande. A fêmea sem dedos berrava.
O indonésio sentiu uma ponta de ciúme. Com um berro e dois encontrões, pôs-se à frente dos outros. Ergueu a catana sobre a fêmea com falta de dedos no pé. A que não se calava. Deixou a catana cair sobre ela. Sem fazer força. A catana estava um pouco romba, porque só se enterrou até ao osso. Foi num braço, nada de grave. A fêmea berrava mais alto e parecia que lhe falava naquela língua esquisita dos outros. Desta vez tinha de fazer força. Fez. A perna separou-se do corpo como se aquilo fosse uma boneca. Só que as bonecas não espirram sangue.
Nessa altura os outros homens de T-shirts pretas também quiseram entrar no divertimento, e lançaram as suas facas sobre a presa. O indonésio olhava para o Tipo. O Tipo estava quase a chegar lá. Os seus olhos encontraram-se. O indonésio fez-lhe um sinal. O Tipo acenou que sim, e afastou a faca do pescoço da fêmea nova. Os seus movimentos tornaram-se mais rápidos. O indonésio ergueu a catana. O Tipo obrigou a fêmea a baixar-se. Gritou "Agora!" E o indonésio baixou a catana com força. A cabeça da fêmea nova saltou e rolou pelo chão enquanto o Tipo se vinha. E se vinha. E se vinha.
O indonésio sentiu o seu próprio sexo em turgescência. Pegou na cabeça pelos cabelos e lambeu-lhe os olhos. Que tinham ficado bem abertos. E em que sangue se misturava com lágrimas e com terra vinda do chão...
O Telepata 243 sentiu um tremendo choque eléctrico. Caiu num vácuo escuro dentro de si. Ficou nele algum tempo.
O Telepata 243 voltou ao mundo real, sentindo a presença de moléculas incomuns no seu ambiente. Quer interno, quer externo. Principalmente nos Poros da Vida. Controladores berravam-lhe no cérebro, descontrolados. O Telepata 243 olhou em torno de si. Aos seus pés, ou o equivalente a pés na sua estrutura corporal, uma larga poça púrpura estendia-se num círculo rugoso. Fluidos vitais. Fluidos vitais de telepatas. O Telepata 243 olhou com mais atenção. No chão, dois telepatas encontravam-se caídos. Já não vomitavam. Os seus corpos tornavam-se lentamente negros. Os fios dos seus interfaces pendiam cabisbaixos, como que sem vida. O telepata reconheceu o sabor que sentia nos Poros. O telepata expandiu-se, sem controlo, quando reconheceu o horror.
Depois vomitou púrpura e abateu-se aos pés de si mesmo. Quando os limpadores chegaram, já estava bem negro.